Ética nas pequenas decisões: o comportamento individual como base para a integridade organizacional
Nas últimas décadas, os programas de compliance consolidaram-se como instrumentos estratégicos para a promoção da integridade e da responsabilidade nas organizações, em especial diante da crescente pressão por transparência e dos escândalos corporativos que impulsionaram o fortalecimento de marcos regulatórios, tanto no Brasil quanto no cenário internacional. Esses programas, em geral, concentram-se na elaboração de códigos de conduta, políticas internas, mecanismos de controle e canais de denúncia.
Embora essas ferramentas sejam essenciais para estruturar um sistema normativo robusto, frequentemente privilegiam abordagens formais e institucionais, deixando em segundo plano os aspectos comportamentais e cotidianos que influenciam, de maneira profunda, a cultura organizacional.
É nesse contexto que ganha relevância o conceito de ética nas pequenas decisões, uma perspectiva que amplia o foco da conformidade para além das normas e controles, ao destacar o papel do indivíduo e suas escolhas diárias como pilares da integridade institucional.
Essa abordagem valoriza atitudes rotineiras, de baixa visibilidade e impacto imediato aparentemente discreto, mas que possuem relevância estrutural na consolidação de uma cultura ética sustentável. São comportamentos como respeitar normas de conduta aparentemente triviais, evitar omissões propositais, zelar pelo uso responsável dos recursos organizacionais ou manter a transparência em interações internas. Tais ações, embora muitas vezes invisíveis aos sistemas tradicionais de monitoramento, refletem os valores reais vivenciados dentro da organização.
Este artigo tem como objetivo discutir o papel da ética nas pequenas decisões no fortalecimento dos sistemas de integridade organizacional. A partir de uma abordagem interdisciplinar, que integra fundamentos do compliance, da psicologia organizacional e da ética aplicada, pretende-se evidenciar que a eficácia de um programa de integridade não reside apenas na robustez de seus instrumentos formais, mas na internalização cotidiana de valores éticos por parte dos colaboradores, em todos os níveis hierárquicos.
A conformidade organizacional, portanto, não se resume ao cumprimento mecânico de regras, mas se manifesta no microcosmo das interações diárias, onde pequenas escolhas revelam o grau de aderência individual aos princípios da organização. Enquanto o compliance tradicional atua no nível macro com foco em estruturas, governança e políticas institucionais a ética nas pequenas decisões atua no nível micro, onde comportamentos cotidianos tornam-se expressão concreta da cultura de integridade.
A ética nas pequenas decisões amplia esse enfoque, ao incluir também comportamentos espontâneos, não intencionais ou subestimados — que, ao se acumularem, contribuem decisivamente para o fortalecimento ou erosão da integridade organizacional.
Exemplos ilustrativos incluem:
• Evitar o repasse de informações confidenciais, mesmo quando não há controle direto ou vigilância;
• Utilizar recursos da empresa exclusivamente para fins pessoais.
• Reportar erros cometidos espontaneamente, sem obrigação formal;
• Promover comunicações internas mais éticas e eficientes, evitando cópias desnecessárias em e-mails;
• Cumprir processos internos completos, mesmo diante de atalhos socialmente aceitos para "ganhar tempo".
Essas condutas, aparentemente triviais, possuem alto valor simbólico e pedagógico. Quando reiteradas, formam o alicerce de uma cultura ética genuína, onde a integridade é um valor internalizado, e não apenas imposto. Em contrapartida, a negligência sistemática em relação a tais comportamentos abre espaço para racionalizações, permissividades e desvios éticos mais graves.
O guia "Programa de Integridade: Práticas Sustentáveis para Empresas Privadas", da Controladoria-Geral da União - CGU enfatiza que:
"Os valores corporativos e o comprometimento com a integridade devem ser formalizados em documentos oficiais, devidamente aprovados pela alta direção e acessíveis a todo o público interno e externo. O Código de Ética ou de Conduta (ou qualquer outro nome semelhante que a empresa escolha) é um documento de valor principiológico e geral, que serve como base para a elaboração das políticas, normas e procedimentos da empresa, os quais têm um caráter mais operacional e prático. Importante também que o Código de Ética esteja em sintonia com o planejamento estratégico da empresa, para que seus valores e compromissos de integridade se reflitam em suas ações e visão de futuro."
Complementarmente, a Controladoria-Geral da União - CGU, no guia “Programa de Integridade: Diretrizes para Empresas Privadas – Volume II (2024)”, informa o seguinte:
"É a partir do Código de Ética que a empresa estabelece os princípios e valores que devem nortear suas atividades e o comportamento de todos que a integram. Em geral, o Código de Ética é um documento principiológico, complementado pelas demais políticas e procedimentos de integridade da empresa."
O Código de Ética ou de Conduta, como base principiológica, deve orientar a elaboração de normas e procedimentos operacionais, refletindo o planejamento estratégico da empresa e sua visão de futuro. Mais do que um repositório de regras, esse código deve ser vivido na prática, orientando condutas e incentivando o protagonismo ético individual.
Assim, a construção de uma cultura de integridade depende não apenas de estruturas institucionais, mas de escolhas reiteradas que incorporam a ética ao cotidiano organizacional.
Conforme destaca a Cunha (2022), na obra “Insights de Carreira para Compliance Officers”, “as organizações com culturas que incentivam a conformidade tendem a apresentar programas mais eficazes de ética e compliance”. Entretanto, essa efetividade só é alcançada quando há engajamento genuíno dos colaboradores com os valores organizacionais algo que se constrói a partir do reconhecimento do papel de cada indivíduo como agente de integridade.
Portanto, compreender a ética nas pequenas decisões é compreender que o risco de não conformidade frequentemente se inicia na banalização de pequenas infrações e na omissão diante de comportamentos eticamente questionáveis. A verdadeira cultura de integridade não é resultado exclusivo da coerção normativa, mas da consolidação de práticas éticas cotidianas, guiadas por consciência, exemplo e responsabilidade compartilhada.
Referências:
Controladoria Geral da União (CGU). Programa de integridade: diretrizes para empresas privadas. Brasília, DF, 2024. v. 2. p 22. Disponível em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/etica-e-integridade/empresas-privadas Acessado em: 17.abr.2025.
Controladoria-Geral da União. Programa de Integridade: Práticas Sustentáveis para Empresas Privadas. Brasília, DF, 2024. p 10. Disponível em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/integridade-privada/normativos/programas-de-integridade/programa-de-integridade-praticas-sustentaveis-para-empresas-privadas.pdf. Acessado em:16.abr./2025.
CUNHA, Matheus Lourenço Rodrigues da et al. (Orgs.). Insights de carreira para compliance officers: coleção compliance mastermind. Vol. 3. São Paulo: LEC Legal Ethics and Compliance, 2022. P43.
Sobre a autora:
Larissa Oliveira Pereira. Graduada em Ciências Contábeis com MBA em Governança, Riscos e Compliance. Atualmente, ocupa o cargo de Analista de Compliance Sênior no Sistema FIEC.